Um contraste entre os altos impostos e o pouco retorno

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Lourdes Sola, socióloga e cientista política da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a grande adesão às manifestações do Movimento Passe Livre se deve, entre outros motivos, ao fato de suas lideranças se enxergarem como “representantes ocasionais”, porta-vozes como qualquer outra pessoa poderia ser, e pela tecnologia permitida pelas redes sociais. Mas embora o movimento tenha objetivos específicos e mobilizadores, por tarifas de um serviço público de interesse “universal”, há por trás algo mais amplo: o contraste entre os impostos pagos ao governo e o que o cidadão recebe, permitindo generalização de críticas para saúde, educação, recursos públicos para Copas etc.

Valor: Qual o significado que vê nos protestos do Movimento Passe Livre? Eles vão hoje além da reivindicação sobre a redução da tarifa?

Lourdes Sola: As razões pelas quais o movimento adquiriu essa escala, ou seja, as razões para a adesão a ele, são múltiplas e difusas, mas as reivindicações em si não. O que confere um caráter difuso e horizontal são dois aspectos: 1) é o fato de que seus participantes mais ativos não se identificam com uma liderança, nem tampouco seus representantes. Pois, pelo que vi no “Roda Viva” [programa da TV Cultura], veem-se como representantes ocasionais, talvez algo de porta-vozes: “Estamos aqui, outros poderiam estar”. Cá entre nós, uma reação madura, bem menos narcisista do que a maioria dos nossos políticos. 2) O segundo aspecto é a tecnologia da mobilização, via redes. Há um terceiro fator, em relação ao que há de específico quando comparado a outros movimentos aparentemente similares. É importante fazer uma outra distinção. Trata-se de um basta, ironicamente, “contra tudo o que está aí”, mas os objetivos inicialmente traçados foram deliberadamente específicos, claros e altamente mobilizadores: tarifas de um serviço público de interesse “universal”. Embora concorde que foi apenas o estopim, houve sim um cálculo politicamente correto, inteligente e maduro dos que o iniciaram que consiste em dois aspectos: dar foco ao movimento inicial; e canalizar para um tipo de serviço público que fala a todos os que usam a rua, seja pela via do transporte coletivo, o individual, ou o pedestre. E, claro, por trás disso há o contraste evidente entre os recursos canalizados para os governos pela via dos impostos e o que o cidadão recebe. Daí a generalizar a crítica para servicos de saúde, educação, saneamento e, especialmente, para o uso de recursos públicos para eventos populares como as Copas, é apenas um passo. Daí, também, à crítica à corrupção, aos arranjos “intra-muros” exclusivos à classe política e excludentes em relação à voz do cidadão, até aqui difusa. Temo que daí seja também um passo em direção à crítica ao tipo de crescimento baseado no consumo de carros, que afinal, convenhamos, é o sonho da indústria automobilística.

Valor: Qual relação entre este protesto com os demais que ocorrem no mundo, como na Turquia e a Primavera Árabe?

Lourdes: Acho engraçada a nossa vontade de produzir uma teoria universal para esses movimentos, a partir da forma e da escala da mobilização em rede. A primeira tarefa é saber o que há de específico a cada um dos casos. Claro, todos apontam para nova forma de fazer política, mas para começar a Turquia e a Primavera Árabe se distinguem entre si. A Turquia é um país democrático, com déficits de representação similares mas não idênticos ao nosso, e onde estão em jogo as vozes de um eleitorado ocidentalizado, comprometido com o Estado de direito e com uma tradição reformista e europeizante versus um outro setor da população cooptado por um líder que circunscreve democracia a democracia eleitoral. Como lembrou [Timothy] Garton Ash no “Estado de S. Paulo”, [Recep Tayyip ] Erdogan [primeiro-ministro turco] é um líder que recolhe tradição “sultânica”, entulho do império otomano. Por outro lado, a Primavera Árabe, a meu ver, introduziu o fim de uma era de democratizações, vigente nos 80-90, que foram as “revoluções de veludo”. Vale dizer, quando as democratizações se deram, [ocorreram] de forma comparativamente pacífica. Em todo caso, perto das duas formas de protesto, a nossa parece um “luxo”, pois se dá em um quadro democrático, com uma Constituição relativamente consolidada: em que pesem a arrogância inicial e pouco democrática dos governantes em ignorar aos primeiros movimentos de opinião, sem falar no comportamento policial. De qualquer forma, dado que a democracia é o regime que tem a superioridade de se autocorrigir – esse movimento é sem dúvida um clamor por corretivos -, estamos relativamente melhor, apesar de insatisfeitos.

 

Por Vanessa Jurgenfeld | De São Paulo
Fonte: Valor Econômico

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