Os privilégios e garantias do crédito tributário e a lei complementar

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Premidos pela necessidade de receber seus créditos tributários, os Fiscos, especialmente o federal, vêm estabelecendo um conjunto não desprezível de privilégios e garantias ao crédito tributário, por vezes até por mero ato administrativo[1], sem observância da reserva material de lei complementar exigida constitucionalmente para tal assunto.

Sem pretender estabelecer um rol exaustivo, apenas para ficar no plano federal, foram instituídos nos últimos anos vários privilégios e garantias para o crédito tributário, tais como a medida cautelar fiscal (Lei 8.397/92), o arrolamento de bens e direitos (Lei 9.532/97), os crimes tributários (leis 8.137/90 e 9.430/96), o protesto da Certidão de Dívida Ativa (Lei 12.767/12) e a indisponibilidade administrativa de bens (Lei 13.606/18).

O crédito tributário representa juridicamente a expressão nominal do direito de crédito que o Estado dispõe contra o sujeito passivo tributário (contribuinte ou responsável), direito este que revela um interesse público especial na medida em que o tributo constitui o preço que a cidadania paga para que o Estado promova a satisfação das necessidades coletivas.

A obrigação tributária, no bojo da qual nasce o crédito tributário, nada mais é que a estrutura formal desenvolvida no âmbito do Direito Privado, tomada de empréstimo pelo Direito Tributário para instrumentalizar o dever tributário de pagar tributos imposto a todos no Estado Democrático de Direito.

Criados para reforçar o cumprimento do dever tributário pelo sujeito passivo, os privilégios e garantias compõem a essência do regime jurídico do crédito tributário, são-lhe ínsitos e dele não se apartam. O crédito qualifica-se como tributário, entre outras razões, porque é dotado de privilégios e garantias que a ordem jurídica lhe assegura. Assumem a natureza de privilégios e garantias do crédito tributário todas as normas jurídicas que tenham o objetivo precípuo de reforçar a possibilidade de realização do direito de crédito do Estado em matéria tributária.

Porque estão albergados no regime jurídico do crédito tributário, os privilégios e garantias constituem um capítulo próprio do Código Tributário Nacional (CTN), caracterizando-se como normas gerais de Direito Tributário. Vale registrar que o Capítulo VI, que trata das garantias e privilégios do crédito tributário, está inserido no Livro II – Normas Gerais de Direito Tributário e Título III – Crédito Tributário, a não deixar qualquer dúvida quanto à natureza da matéria como “norma geral de Direito Tributário”.

Estão previstos como garantias e privilégios do crédito tributário no CTN a responsabilidade patrimonial universal do sujeito passivo pelo crédito tributário (artigo 184), a presunção de fraude à Fazenda Pública no caso de alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, pelo sujeito passivo relativamente a crédito inscrito como dívida ativa (artigo 185, com a redação da Lei Complementar 118/2005) e a indisponibilidade de bens e direitos do sujeito passivo (artigo 185-A, incluído pela Lei Complementar 118/2005).

No capítulo das garantias e privilégios, o CTN inclui as “preferências” do crédito tributário, estabelecendo a regra geral segundo a qual “o crédito tributário prefere a qualquer outro, seja qual for sua natureza ou o tempo de sua constituição, ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho ou do acidente de trabalho” (artigo 186, com redação da Lei Complementar 118/2005).

São estes, e apenas estes, os privilégios e garantias do crédito tributário contemplados pelo CTN, norma jurídica que estabelece as regras gerais de legislação tributária com eficácia de lei complementar, como sempre exigiu o regime constitucional brasileiro.

Com efeito, a atual ordem constitucional, mantendo a tradição do Direito Constitucional brasileiro, atribuiu à lei complementar a reserva material de competência para a disciplina de normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre obrigação, lançamento,crédito, prescrição e decadência tributários (artigos 146, III, b), regras que já estavam previstas no CTN no momento do surgimento do citado comando constitucional, daí porque recepcionadas com estatura normativa de lei complementar.

O peculiar federalismo brasileiro, ao distribuir competências tributárias por três esferas de governo, impôs à lei complementar que estabelece normas gerais de legislação tributária asfunções normativas de estabilização e bloqueio. É dizer, a lei complementar que institui normas gerais de legislação tributária uniformiza e, sobretudo, estabiliza o regime jurídico do nascimento, desenvolvimento e extinção do dever tributário, e simultaneamente bloqueia, isto é, impede que as unidades federativas criem regime jurídicos próprios, diferenciados, para o seu respectivo crédito tributário, obrigando todas ao mesmo regime jurídico definido nacionalmente.

Em matéria tributária, a lei complementar que veicula norma geral é sobretudo uma norma nacional, uma autêntica e necessária exigência do regime federativo brasileiro, razão pela qual a sua matriz radica na carta política.

A Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, atual CTN[2], nasceu sob a égide da Constituição Federal de 1946, a qual não contemplava a figura da lei complementar como espécie legislativa autônoma, o que só veio a ocorrer com a Emenda Constitucional 4, de 2 de setembro de 1961.

Registre-se que a primeira vez que a lei complementar apareceu no Direito Constitucional brasileiro, enquanto veículo normativo especial cuja aprovação pelo Parlamento depende dequorum qualificado, ocorreu com a EC 4/61, que instituiu o sistema parlamentar de governo no Brasil e previu (artigo 22) a possibilidade de leis votadas nas duas Casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta dos seus membros, para “complementar” a organização do sistema parlamentar de governo por meio dela instituído. Com base nesta autorização constitucional, foram editadas a Lei Complementar 1, de 17 de junho de 1962, e a Lei Complementar 2, de 16 de setembro de 1962, que regularam o sistema parlamentar de governo.

A ordem constitucional de 1946, logo no seu Título I (Da organização federal), previu a competência da União Federal para legislar sobre “normas gerais de direito financeiro”, expressão que à época também contemplava as regras de índole tributária, inaugurando uma tradição em vigor nos dias atuais (artigo 146, CF/88). Ao tempo que outorgava competências tributárias aos entes federados, instituindo o chamado “federalismo cooperativo”, a CF/1946 tinha o objetivo de buscar construir um espaço de competência material para a instituição de regras nacionais para temas importantes para o país.

A organização do sistema tributário da federação brasileira veio efetivamente com a Emenda Constitucional 18, de 1 de dezembro de 1965, que promoveu a reforma do sistema tributário, prevendo as incidências, distribuindo as competências e repartindo o produto das receitas tributárias.

A Constituição Federal de 1967 (artigo 19, parágrafo 1º) reservou pela primeira vez no plano constitucional à lei complementar a competência para estabelecer normas gerais de Direito Tributário, dispor sobre conflitos de competência tributária entre os entes federados e regular as limitações constitucionais ao poder de tributar[3]. As matérias referidas na Constituição são exatamente aquelas que já estavam tratadas no CTN, daí porque ele foi recepcionado pela vigente ordem constitucional com eficácia normativa de lei complementar.

A Emenda Constitucional 1, de 17 de outubro de 1969 (artigo 18, parágrafo 1º), manteve a reserva constitucional à lei complementar para estabelecer normas gerais de Direito Tributário, dispor sobre os conflitos de competência nesta matéria entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios e regular as limitações constitucionais do poder de tributar. Vale dizer, a aludida emenda constitucional manteve recepcionado constitucionalmente o CTN como a lei complementar exigida para a disciplina das referidas matérias, regramento que foi mantido pela ordem constitucional de 1988 (artigo 146, III).

Assim, não resta dúvida de que norma geral em matéria de legislação tributária somente pode ser veiculada por lei complementar, cujas funções normativas de estabilização e bloqueio se manifestam através do seu caráter nacional. A propósito do tema, vale a percuciente observação do ministro Gilmar Mendes, verbis:

 

“Embora pouco se tenha avançado na doutrina no sentido da busca da adequada definição para “normas gerais”, é possível extrair na interpretação dos diversos dispositivos constitucionais que estabeleceram reserva de matéria à disciplina da lei complementar que a esta espécie legislativa foi atribuída a missão de fixar normas com âmbito de eficácia nacional e não apenas federal.

(…)

Se a Constituição não determinou o conceito da norma geral de Direito Tributário, no mínimo fixou-lhe a função: estabelecer preceitos que devam ser seguidos em âmbito nacional, que ultrapassem a competência do Congresso Nacional para ditar o direito positivo federal.

Trata-se de normas com maior espectro, a serem seguidas por todas as esferas políticas com competência tributária de maneira uniforme, seja por direta incidência sobre as relações jurídico-tributárias, seja como fator delimitador da edição da legislação ordinária em matéria fiscal”[4].

A atual carta política (artigo 146, III) deixa claro como a luz solar a reserva de competência da lei complementar para estabelecer “normas gerais em matéria de legislação tributária”, entendidas como aquelas que digam respeito ao regime jurídico do nascimento, desenvolvimento e extinção do dever tributário e do respectivo crédito tributário. Registre-se que o advérbio “especialmente” inscrito no texto do artigo 146, III demonstra o caráter exemplificativo das matérias ali referidas, como já reconheceu o Plenário do Supremo Tribunal Federal[5].

Com efeito, por imposição do sistema constitucional brasileiro, o regime jurídico do crédito tributário está sob reserva material de lei complementar. O Supremo Tribunal Federal[6]caminhou na mesma trilha quando considerou inconstitucional lei distrital que pretendia criar nova hipótese de extinção do crédito tributário, além daquelas já previstas no artigo 156 do CTN, entre outras razões, por ofender a reserva de lei complementar em matéria de normas gerais de Direito Tributário[7].

Diante do retro afirmado, entendemos que a enumeração dos privilégios e garantias do crédito tributário prevista no CTN é exaustiva, de modo que novos privilégios e garantias do crédito tributário somente podem ser veiculados por lei complementar.

Neste sentido, a “lei” a que se refere o artigo 183 do CTN[8] é obviamente uma lei complementar, jamais uma lei ordinária. No momento em que editado o CTN, não havia na ordem jurídica brasileira a figura da lei complementar com o perfil jurídico de norma nacional de legislação tributária. O próprio CTN é uma lei ordinária e por óbvio, não poderia remeter a uma lei complementar. Logo, a referência que aquela regra do CTN faz a “outras garantias previstas em lei em função da natureza ou das características do tributo a que se refiram” possui tão somente o condão de reforçar a exigência de lei para a veiculação de tal matéria, jamais de dispensar o veículo da lei complementar. Privilégios e garantias do crédito tributário constituem norma geral de legislação tributária, daí porque a “lei” citada no artigo 183 necessariamente há de ser uma lei complementar.

Pelo exposto, os privilégios e garantias do crédito tributário possuem a natureza jurídica de normas gerais de legislação tributária, submetidas constitucionalmente à reserva material de lei complementar. Somente lei complementar pode criar novas hipóteses de privilégios e garantias do crédito tributário além daqueles atualmente previstos no CTN.

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