O contrato fiscal e a costela de Adão

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A um só tempo pensador e agitador, o Padre Antônio Vieira nos fornece em um dos seus famosos “Sermões” (1642) a chave para pensar os dilemas do contrato fiscal brasileiro. Vieira cita o imperador Teodorico que teria afirmado “Eu sei que há tributos, porque vejo as minhas rendas acrescentadas; vós não sabeis se os há, porque não sentis as vossas diminuídas”. E conclui: ” Se é necessário para a conservação da Pátria, tire-se a carne, tire-se o sangue, tirem-se os ossos, que assim é razão que seja; mas tire-se com tal modo, com tal indústria, com tal suavidade, que os homens não o sintam, nem quase o vejam”.

Eis sua receita para os tributos: suaves, quase invisíveis. O exemplo divino deveria ser imitado: “Deus tirou a costela a Adão, mas ele não o viu nem o sentiu”.

No Brasil a era da invisibilidade dos impostos parece definitivamente ter acabado.

A era da invisibilidade dos impostos acabou

O mal estar atual na democracia brasileira tem girado em torno do contrato fiscal. Ou mais especificamente da percepção de que a carga tributária é muito elevada e que o retorno social dos impostos pagos é pífio. Para os setores mais pobres os impostos são menos visíveis, pois são indiretos, mas mesmo assim há forte percepção de que os impostos são muito elevados. Na pesquisa do Ibope/Latino Barômetro (2012), 66,7% dos respondentes que se autoclassificaram como entre os 10% mais pobres afirmaram que os impostos estavam muito altos. A mais elevada taxa de resposta – 82,5% – correspondiam aqueles no terceiro decil da distribuição de renda, superior aos 76,6% dos 10% mais ricos. Apenas 1,5% dos entrevistados acreditavam que os impostos estavam baixos e 1,9% que os impostos estavam em um nível adequado. No levantamento da Lapop a avaliação dos serviços públicos é a pior dentre os países latino-americanos.

O dilema institucional é dado pela necessidade de melhorar serviços públicos e investir mais em educação e saúde em um quadro em que a carga tributária já é superior a média da OCDE. Grande parte do dilema é que o quinto superior da distribuição de renda paga a conta o que exacerba o conflito redistributivo. Devido à fortíssima concentração de renda, embora do ponto de vista da capacidade de pagamento o quinto superior da renda contribua proporcionalmente muito menos do que os pobres, há fortíssima concentração da tributação neste segmento de renda. Segundo pesquisas recentes do Banco Mundial, os 20% mais ricos do país contribuem proporcionalmente mais para o financiamento do sistema de proteção social do que seus correspondentes na Europa e EUA. Este paradoxo é produto da concentração elevadíssima de renda e aponta para o desafio político da agenda redistributiva e de melhorias nos serviços.

Este paradoxo convive com perversidades importantes do contrato fiscal: no grupo de menores ingressos do país, os impostos indiretos chegam a representar percentagens expressivas das transferências de renda que recebem. O paradoxo discutido por Lustig e colaboradores é que o Gini pré-pagamento dos impostos indiretos (que inclui transferências) é estimado como menor do que o Gini da distribuição de renda pós-fisco. O resultado mais perverso é que 27% dos moderadamente pobres passam a categoria de pobreza extrema (US$ 2,50 por dia) quando se contabiliza os impostos indiretos que pagam. Em outras palavras, o efeito equalizador das transferências de renda são anulados pelos impostos indiretos (ICMS) que incidem sobre o consumo dos pobres. Esses estudos não contabilizam subsídios altamente regressivos ao consumo de energia elétrica e outros penduricalhos que vão na contramão do gasto social de caráter progressivo.

Uma parte importante das tensões em torno do contrato fiscal brasileiro reflete o fato que o gasto social brasileiro nas áreas de ensino fundamental e atenção à saúde tornou-se fortemente redistributivo na última década. Mas, como mostrou Francisco Ferreira, isso não ocorreu devido a uma maior focalização do gasto nos setores de menor ingresso mas pelo abandono dos setores de média renda do SUS e da escola pública. Essa retirada concentrou as demandas sobre o setor privado provedor de serviços que operam sob regulação extremamente deficiente.

Mas porque a redistribuição de renda não tem sido maior do que a efetivamente ocorrida? Uma hipótese levantada é que as perspectivas de mobilidade social futura afetariam o apoio a demandas redistributivas no presente. A intuição para essa hipótese que ficou conhecida como Poum (sigla da expressão inglesa Prospect of Upward Mobility) tem origem em Hirschmann que há cerca de 40 anos analisou o “efeito túnel” na tolerância quanto à concentração de renda durante o processo de industrialização. A metáfora é sobre o que ocorre em um túnel engarrafado quando os motoristas de uma faixa observam que aqueles na faixa ao lado começam a mover-se, gerando expectativas positivas de que sua própria faixa também comece a fazê-lo. Assim as pessoas estariam dispostas a tolerar a desigualdade quando tem perspectivas de mobilidade social futura. Essa tem sido uma das explicações canônicas sobre porque há pouca redistribuição de renda nos EUA comparado com os países europeus.

Embora a hipótese Poum não encontre suporte empírico no Brasil, a reversão das perspectivas de mobilidade social futura geradas na década do boom de commodities (2002-2010) é certamente uma das causas da malaise institucional. Neste sentido, o que se observa é o fim do efeito túnel hirshmanniano: a reversão de expectativas produz forte descontentamento e coloca em cheque o contrato fiscal: demandas redobradas por distribuição e conflitos sobre taxação.

O aumento líquido de recursos parece ter encontrado limites na insatisfação gerada em torno do contrato fiscal. Ele não acontecerá na margem mas implicará em eliminação de subsídios e redesenho dos atuais programas sociais e regras (pensões, regra do salário mínimo, seguro desemprego). O governo, no entanto, não dá sinais de que percebeu que o equilíbrio perverso anterior se esgotou. Estamos longe da situação em que, como afirmou Vieira, “como não há privilegiados, não há queixosos.”

Por Marcus André Melo

 

Fonte: Valor Econômico

 

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