O ceticismo profissional na Contabilidade e a mitigação de risco

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Diante de tantos acontecimentos recentes e operações que envolvem casos de corrupção e lavagem de dinheiro, o movimento que tem se observado no Brasil é marcado pelo repúdio da sociedade e pela cobrança acerca da exemplar punição aos criminosos. Apesar de aumentar o pessimismo dos agentes quanto à confiabilidade, esse processo acaba agregando algo positivo ao ambiente de negócios à medida que desperta e sensibiliza todos os stakeholders envolvidos. Toda essa situação pode representar passos importantes em direção a um novo caminho, regido pela ética, integridade, confiança e transparência.

Apesar de, em 2018, ter sido a segurança a maior preocupação dos brasileiros (com um índice de 75%), de acordo com dados do Ibope, a preocupação com a corrupção cresceu, significativamente, nos últimos anos, sobretudo a partir de 2015. Como pode ser observado no gráfico abaixo, o item “corrupção” atingiu seu maior índice em 2017 (62%), tornando-se a maior preocupação entre os brasileiros neste ano. Esse período coincide justamente com o desenrolar da operação Lava Jato, iniciada em 2014 e já na sua 61ª fase, com registros de pedido de ressarcimento (incluindo multas) da ordem de R$44,85 bilhões até outubro de 2018, segundo dados do Ministério Público Federal.

Preocupação dos brasileiros com a corrupção

Fonte: O Globo (dados do Ibope, anos disponíveis).

A detecção e a prevenção de atos ilegais se constituem ainda em um dos maiores desafios para as organizações públicas e privadas. E essa, claramente, não é uma particularidade brasileira, pois ocorre em todas as partes do mundo, independente da importância política ou econômica do país no cenário mundial. Nesse contexto, além de se destacar a edição de leis mais severas e identificar e punir com mais efetividade os responsáveis – assunto amplamente divulgado e debatido –, é também importante criar mecanismos que previnam essas condutas criminosas. Um dos meios que podem ser utilizados para coibir essa prática é assumir uma postura cética, pois uma visão imparcial, cautelosa e questionadora pode permitir menores perdas e resultados mais eficientes.

Diante disso, este artigo pretende lançar um olhar abrangente a respeito do ceticismo no âmbito profissional. Pode-se dizer que essa postura na profissão nasce da necessidade de mitigar riscos e preservar o interesse público, dadas a deterioração do ambiente de negócios e a desonestidade de propósitos daqueles que buscam levar vantagens indevidas nas transações realizadas, motivadas por práticas criminosas em larga medida na lavagem de ativos, corrupção, crimes contra a ordem econômica, financeira e tributária, fraude em licitações, entre outros.

No âmbito da Contabilidade, considerando o contexto brasileiro de desconfiança generalizada, o ceticismo profissional dos auditores é uma decorrência natural e necessária, pois esses profissionais precisam ter um olhar muito mais crítico sobre tudo o que examinam, dada a sua importância para assegurar a governança e os controles das organizações.

Com a Lei n.º 11.638/2007, o Brasil passou a adotar as normas internacionais de contabilidade, mais comumente conhecidas por IFRS, introduzindo inovações tanto para as demonstrações contábeis quanto para as práticas contábeis, visto que essas normas são baseadas muito mais em princípios do que em regras[i] (SAIKI e ANTUNES, 2010). Isso trouxe implicações relevantes no dia a dia do profissional da contabilidade, exigindo-lhe o exercício apurado e permanente da boa técnica no julgamento dos fatos apresentados para o reconhecimento, a mensuração, a apresentação e a evidenciação destes para a qualidade da informação contábil-financeira, útil e de propósito geral.

Para Hurtt (2007)[ii], nenhuma outra área está tão preocupada com o papel de ceticismo profissional como a Auditoria. Para esse autor, o ceticismo profissional pode ser considerado como a propensão de um indivíduo em adiar a conclusão de uma tarefa até que a evidência forneça suporte suficiente para uma explicação sobre determinado fato. Por sua vez, a International Federation of Accountants (Ifac) define o ceticismo profissional como “a postura que inclui uma mente questionadora e alerta para condições que possam indicar possível distorção devido a erro ou fraude e uma avaliação crítica das evidências de auditoria.” (NBC TA 200, par. 13(l)). Salienta ainda que é necessária uma postura cética ao longo de todo o trabalho, para que o auditor independente reduza os riscos inerentes à atividade considerando os envolvidos. Esses riscos podem se referir às seguintes situações: não identificar circunstâncias suspeitas; obter conclusões generalizadas; e usar pressupostos errados na obtenção de evidência e na avaliação dos respectivos resultados.

De modo geral, as características comuns das definições de ceticismo profissional encontradas na literatura podem ser resumidas por meio dos seguintes tópicos: (i) questionar; (ii) obter e avaliar de forma crítica a prova de auditoria essencial para detectar erros materialmente relevantes; (iii) identificar e avaliar os riscos de distorção material.

Em outras palavras, adotar uma postura cética não significa não acreditar em nada ou desconfiar de tudo, mas, sim, esperar para acreditar em algo que tenha sido dito ou apresentado até o momento que seja comprovada sua veracidade por meio de fatos ou de fontes que, necessariamente, possam ser consideradas desprovidas de qualquer interesse.

Não se trata de ser um detetive corporativo. Mas para mitigar o risco da atividade, é preciso, sim, que os profissionais exerçam sua inteligência profissional e emocional; busquem capacitação permanente; adotem e utilizem recursos tecnológicos concebidos, especificamente, com tal finalidade para a agilidade dos procedimentos, economia de tempo na análise das informações, alcance da eficiência nos resultados apresentados; e questionem, de forma mais incisiva, práticas e operações que sugerem irregularidades.

É importante salientar que, em 2010, foi concluído o processo de convergência das normas de auditoria brasileira para o padrão internacional (Normas Internacionais de Auditoria – ISAs). Desde então, todas as empresas de auditoria brasileiras estão praticando as mesmas normas de auditoria que estão em vigor nas maiores economias mundiais. Além disso, a implementação da Lei Anticorrupção no Brasil (Lei n.º 12.846/2013) trouxe, também, barreiras aos atos corruptivos ao impor responsabilização objetiva, nos âmbitos civil e administrativo, à empresa que praticar o ato lesivo. Todos esses mecanismos legais vieram para inibir fraudes e punir severamente atos ilícitos nas empresas.

Nesse âmbito da Auditoria, o ceticismo profissional é relevante e necessário durante todas as fases. As Normas Brasileiras de Contabilidade – Auditoria Independente de Informação Contábil Histórica (NBC TA) – que correspondem às ISAs – nos fornecem alguns exemplos de momentos em que a postura cética é indispensável, a saber:

  • ao aceitar o trabalho de auditoria – levar em conta questões como a integridade dos principais proprietários e da gerência (NBC TA 220, par. A8);
  • ao identificar e avaliar os riscos de distorção material – por exemplo, rever a avaliação do auditor sobre os riscos de distorção material e proceder a modificações nos processos de auditoria planejados (NBC TA 315, par. 31 e NBC TA par. 12 e A13);
  • ao planejar os procedimentos adicionais de auditoria que respondam aos riscos avaliados – por exemplo, a necessidade de aumentar a quantidade de prova ou de obter prova que seja mais relevante para as áreas de maiores riscos avaliados (NBC TA 330, par. 7 e A19);
  • ao planejar e executar procedimentos analíticos substantivos – por exemplo, avaliar a confiabilidade dos dados a partir dos quais a expectativa do auditor é desenvolvida (NBC TA 520, par. 5 e 7);
  • e ao verificar se as demonstrações financeiras são elaboradas de acordo com o referencial de relato financeiro (NBC TA 700, par. 11).

Vale mencionar que manter uma postura cética na Contabilidade ou em qualquer outra profissão não é simplesmente uma questão de desconfiança generalizada e, sim, da adoção de procedimentos necessários e suficientes para a mitigação dos riscos no exercício da atividade. Embora se cultive a crença de que a outra parte é honesta e mantém a integridade, isso não liberta o profissional da necessidade de questionar e cumprir os requisitos de verificação, mantendo o ceticismo profissional e pensamento crítico até obter segurança razoável e ficando satisfeito com a comprovação dos fatos em determinada situação para, a partir de então, exercer o julgamento técnico e adotar as medidas necessárias.

Assim, por sua definição, podemos perceber que a importância desse conceito na auditoria é ainda mais imprescindível. Como salienta Carpenter et al. (2002­)[iii], o custo advindo da ausência de ceticismo na profissão não é apenas mensurado por perdas financeiras, mas também pela reputação e confiança perdidas perante os investidores nos mercados de capitais.

Nesse âmbito de combate a corrupção e fraudes, é importante mencionar que se encontra em discussão no Brasil a adoção da nova norma internacional – a Noclar (Non-Compliance with Laws and Regulations – não conformidade com leis e regulações). Essa norma orienta contadores de empresas e auditores independentes a comunicarem às autoridades competentes, ao identificarem, no exercício de suas funções, desvios de leis e regulamentos, como práticas de corrupção, lavagem de dinheiro e sonegação de impostos. Entretanto, para que essa norma possa ser adotada, são imprescindíveis alterações no ambiente regulatório, para que o profissional da contabilidade tenha preservada a sua independência e assegurada a proteção ao exercício profissional, necessárias e garantidas na nossa Carta Magna (Art. 5º, inciso XIII).

No tocante à prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, o Sistema CFC/CRCs, com o intuito de manter a correta aplicação da lei brasileira e de estimular o comportamento ético e a adoção de política de prevenção para mitigar o risco do exercício profissional, editou, em julho de 2013, a Resolução CFC n.º 1.445, aplicável aos profissionais e às organizações contábeis, no ambiente dos serviços prestados de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza.

Desde então, realizou ações de divulgação e conscientização para o desenvolvimento do pensamento crítico para o cumprimento do dever de informar ao Coaf sobre as situações de ocorrência de operações suspeitas de crime de lavagem de ativos. A linha adotada foi de “conheça o seu cliente e acompanhe suas operações”, por meio de procedimentos previstos, acompanhamento, capacitação, informes e publicação de cartilhas. Eis os dados do desempenho anual dos últimos três anos:

Fonte: Cofis/CFC

Em geral, as fraudes ocorrem devido a uma oportunidade existente e à convicção de que o ato não será detectado e, se for, que não será punido. Assim, implementar bons controles internos, políticas de governança e monitoramento ativo de todas as transações são ações fundamentais para minimizar os riscos de atos contrários às normas legais vigentes e afastar os oportunistas mal intencionados.

Nesse contexto, no exercício do ofício, o profissional da contabilidade assume importância ímpar, já que tem acesso às informações e transações realizadas por pessoas, empresas, entidades e órgãos públicos, posição que permite a ele analisar e revisar essas transações, verificando se são consistentes dentro do contexto operacional – origem e aplicação –; se são aderentes às boas práticas e à legislação; ou se existem potenciais indicadores de erros ou fraudes que possam comprometer a fidedignidade e a comparabilidade da informação divulgada.

A depender do risco a que for exposto, amparado nas orientações da Norma Brasileira de Contabilidade PG 200 – Contadores que Prestam Serviços (Contadores Externos), caberá ao profissional exercer julgamento para avaliar a melhor maneira de tratar as ameaças que não estão em nível aceitável, aplicando salvaguardas para eliminá-las ou reduzi-la a um nível aceitável, decidindo por terminar ou declinar o respectivo trabalho.

É inegável que o papel do profissional da contabilidade traz consigo uma grande responsabilidade para produzir e apresentar relatórios contábil-financeiros úteis, relevantes, confiáveis, compreensíveis, comparáveis e de propósito geral. À medida que exerce a profissão pautada nos princípios éticos, estará resguardando o interesse público, os interesses de seus clientes ou empregadores, sem prejuízo da sua dignidade e independência profissional e, assim, contribuirá para o restabelecimento da confiança e para um ambiente de negócios favorável, bem como para a retomada do crescimento econômico e do desenvolvimento do nosso País.

Afinal, como diz a canção Juízo Final, da banda brasileira Legião Urbana, “É o juízo final. A história do bem e do mal. Quero ter olhos pra ver. A maldade desaparecer”. E, assim, perfilho-me a acompanhar aqueles que lutam para que o exercício da profissão contábil seja exercido pelos Colegas, pautados em princípios éticos e na prática da boa técnica, do pensamento crítico, do ceticismo e do julgamento profissional, para que, de fato, haja mitigação do risco ao exercício profissional e sejam mantidas a fidedignidade das informações contábil-financeiras divulgadas e a confiança nos negócios.

Fonte: PORTAL CONTÁBEIS

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