STF definirá se ne bis in idem tem aplicação entre jurisdições de países distintos

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Por Felipe Fernandes de Carvalho e Mariana Madera Nunes

Na primeira sessão do segundo semestre da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, está previsto o julgamento do Habeas Corpus 171.118, em que se discute a extensão do princípio do ne bis in idem e o da soberania nacional.

No writ, busca-se trancar ação penal instaurada em desfavor do paciente pela prática do delito de lavagem de capitais, em razão do prévio cumprimento de sanção imposta em sentença penal condenatória proferida por autoridade judicial suíça a respeito dos mesmos fatos. Sob o prisma do princípio do ne bis in idem, resta frustrada a pretensão punitiva no bojo do procedimento brasileiro, sendo necessário o trancamento da persecução.

Em contraposição à pretensão do paciente, o MPF pontua que o princípio da soberania restringe o âmbito de aplicação do princípio do ne bis in idem. De sua perspectiva, “veda-se tão somente a dupla punição no Brasil em razão do mesmo fato e não a persecução penal no Brasil do fato punido no exterior”, sendo que “a possibilidade de processos nos dois países é decorrência natural e lógica da soberania de cada país (…) e está explicitamente admitida na legislação brasileira (art. 8º do Código Penal[1]), quando permite que a pena imposta no estrangeiro atenue a que venha a ser fixada no Brasil”.

O julgamento desse Habeas Corpus, que está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, simbolizará um marco para a compreensão do princípio da soberania e do ne bis in idem no país. Com efeito, o embate entre esses dois princípios é histórico e a razão de várias celeumas jurídicas também em outras jurisdições.

No dia 17 de junho, inclusive, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso Gamble v. United States, no qual restaram expostas as três principais vertentes dessa discussão em matéria penal.

Nesse precedente, Gamble destacou que, após ter se declarado culpado junto às autoridades do estado do Alabama em razão da prática de crime previsto no ordenamento estadual, promotores federais indiciaram-no pela mesma conduta com base no ordenamento criminal federal. Alegando violação ao princípio da vedação à dupla incriminação — denominado, nos Estados Unidos, de double jeopardy clause —, Gamble pleiteou a cassação do indiciamento.

No ponto, a Quinta Emenda à Constituição norte-americana ressalta ser vedada a dupla punição de uma pessoa pela mesma “ofensa”. No entanto, a Suprema Corte consigna tradicionalmente que a “ofensa” deve ser compreendida como a violação à lei penal de um ente soberano. Dessa ótica, uma única conduta enseja duas “ofensas” se incidirem sobre ela duas leis penais — seja ela de natureza estadual, federal ou internacional.

Essa interpretação acerca da double jeopardy clause vai de encontro ao pleito de Gamble, o qual almejava que a sua conduta fosse considerada como uma única “ofensa” sob o prisma da legislação estadual e da federal. Nesse sentido é que o recurso à Suprema Corte buscava a revisitação de seu tradicional posicionamento.

Por ampla maioria, a Suprema Corte optou por manter a sua jurisprudência. Ao conferir proeminência ao princípio da soberania com relação ao do ne bis in idem, ressaltou-se que essa interpretação da double jeopardy clause“honra a substantiva diferença entre os interesses que dois soberanos podem ter na punição de um mesmo ato”.

A segunda acepção do embate entre o princípio da soberania e o do ne bis in idem pode ser depreendida do voto de dissenso da justice Ginsburg. Nele, mitigou-se o alcance do princípio da soberania face ao do ne bis in idem, a fim de alterar a jurisprudência norte-americana. De acordo com a justice, a interpretação da double jeopardy clause deveria abarcar ofensas à legislação estadual e à federal, permitindo-se, todavia, o duplo processamento criminal por autoridades estadunidenses quando houver uma persecução perante soberania estrangeira.

Em posicionamento ainda mais restritivo ao princípio da soberania, o justiceGorsuch também discordou da opinião majoritária. Contudo, a mitigação ao princípio da soberania promovida em seu voto foi ainda mais ampla do que a constante na opinião da justice Ginsburg, sendo esta a terceira acepção do conflito entre o princípio do ne bis in idem e da soberania nacional. Para o justice Gorsuch, a double jeopardy clause deveria ser aplicada independentemente de a ofensa se referir a violação à lei estadual, federal ou estrangeira.

Apesar de minoritária nos Estados Unidos, a terceira acepção de posicionamento está em compasso com a experiência da Justiça europeia. O Tribunal de Justiça da União Europeia possui uma série de julgados indicando que o princípio do ne bis in idem deve ser aplicado em favor do acusado ainda que tenha sido uma autoridade estrangeira a julgar o fato delitivo por ele praticado. No ponto, a corte internacional reconhece que o cumprimento de um acordo criminal no exterior, tal como uma transação, exaure a possibilidade de novo processamento do acusado em outra jurisdição[2].

O âmbito de aplicação do Tribunal de Justiça da União Europeia inviabiliza, inclusive, que procedimento administrativo que almeje a aplicação de reprimenda de índole penal, tal como a imposição de multa, seja instaurado em um determinado Estado quando houver prévia absolvição do acusado no âmbito da jurisdição penal de outro Estado[3].

De se notar, ainda, que a Decisão-Quadro 2009/948/JAI pontua a necessidade de se cumprir o direito do cidadão de não ser submetido a uma mesma persecução mais de uma vez, destacando que as autoridades dos Estados devem empreender esforços para atingir essa finalidade por meio de consultas diretas entre si e concentração de persecuções criminais em uma única jurisdição.

Adotando idêntica óptica, no caso Loaysa Tamayo vs. Peru[4], a Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que a vedação ao ne bis in idem, para além de impedir a duplicidade de instauração de processos criminais, alcança a impossibilidade de que o indivíduo seja julgado pelos mesmos fatos ainda que em esferas judiciais distintas.

No ponto, a terceira acepção centraliza a defesa do cidadão em detrimento da defesa da soberania estatal — certo que, na relação entre ambos, há imensa disparidade de poderes — e confere proeminência ao princípio do reconhecimento mútuo e da confiança sob a perspectiva internacional. Para além de ser a resolução mais adequada para esse conflito e de ser encampada na maior parte das jurisdições ocidentais, o Brasil assumiu diversos compromissos internacionais defendendo essa vertente do princípio do ne bis in idem, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH)[5].

Assim, no julgamento do Habeas Corpus 171.118, o STF terá a possibilidade de consagrar, no ordenamento pátrio, a terceira acepção do conflito entre os princípios do ne bis in idem e da soberania nacional, estipulando a proibição da dupla persecução criminal entre esferas jurídicas de países distintos, em conformidade com o disposto no PIDCP e na CADH e com os precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.


[1] Art. 8º: A pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas.
[2] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA, Processo contra Giuseppe Francesco Gasparini e outros (C-467/04), julgado em 28.09.2006. Disponível em: <http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=en&num=C-467/04>. Acesso em: 26/7/2019.
[3] Processos contra Enzo Di Puma e Antonio Zecca (C-596/16 e C-597/16), julgados em 20/3/2018. Disponível em: <http://curia.europa.eu/juris/liste.jsf?language=en&num=C-596/16>. Acesso em: 26/7/2019.
[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, caso Loaysa Tamayo vs. Peru, sentença de 17.09.1997 (tradução livre). Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_33_esp.pdf> Acesso em: 26/7/2019. No caso Mohamed vs. Argentina, sentença de 23/11/2012, a CIDH reiterou o entendimento acerca do alcance da garantia. Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_255_esp.pdf>. Acesso em: 26/7/2019.
[5] Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
Artigo 14.7. “Ninguém poderá ser processado ou punido por um delito pelo qual já foi absorvido ou condenado por sentença passada em julgado, em conformidade com a lei e os procedimentos penais de cada país”.
Convenção Americana sobre Direitos Humanos
Artigo 8.4. “O acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos”.

Fonte: Revista Consultor Jurídico

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