Cláusulas pétreas são aquelas normas constitucionais para as quais não se admite mudança nem mesmo através de emenda constitucional. Na verdade, não será sequer objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a aboli-las. Não há dúvidas de que dentre essas normas protegidas (pétreas) consta “a forma federativa de Estado” (artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, CF). A dúvida é até que ponto as normas referentes ao federalismo fiscal estão inseridas nesse item.
Não se trata de uma questão acaciana, na qual se discute o sexo dos anjos. Isso está no centro de uma das propostas de reforma constitucional que vêm sendo discutidas nesta fase de elaboração do pré-projeto pelo governo federal.
Pelo que se lê na imprensa e nos debates que vêm sendo realizados, tal como o da Aasp em conjunto com o Iasp ocorrido na semana passada, em que tive a honra de compartilhar um painel com os economistas Bernard Appy e Fernando Rezende, este específico ponto vem sendo discutido de forma mais ou menos lateral. O mesmo vem ocorrendo nos encontros semanais do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), onde o tema sempre aflora de forma espontânea nos debates. Como o assunto divide opiniões, tentarei apresentá-lo em linhas gerais.
Entende-se por federalismo fiscal a forma através da qual são financiados os entes subnacionais de uma federação, no nosso caso, estados, municípios e Distrito Federal. O nome é usual, porém algo impreciso, pois, embora seja uma característica do Estado federal, é encontrado em Estados unitários, uma vez que nestes também são financiados os entes subnacionais, sejam denominados como regiões autônomas na Espanha, sejam regiões e províncias, como na Itália. A imprecisão também está presente no vocábulo fiscal, pois existe a divisão das receitas não tributárias, como as dos royalties do petróleo e da mineração, que se caracterizam comofederalismo patrimonial. A rigor, o que se consagra no Brasil com o nome de federalismo fiscalseria tecnicamente mais adequado chamar de financiamento dos entes subnacionais ou defederalismo financeiro.
Por outro lado, uma das características do Estado federal é a autonomia financeira desses entes subnacionais. Não se pode imaginar tais entes de pires nas mãos pedindo verbas para as despesas mais comezinhas do quotidiano. Logo, a estrutura federativa deve prever autonomia financeira para que estados e municípios arquem com suas despesas e realizem as políticas públicas adequadas e necessárias para o desenvolvimento da população que se abriga em seu território. Uma obra de relevo onde isso é analisado está chegando às livrarias, através da Editora Noeses, denominada Federalismo (s)em juízo, organizada pelos professores Misabel Derzi, Heleno Torres e Onofre Batista e por mim.
Pois bem, a Constituição de 1988 estabeleceu algumas formas de financiamento desses entes subnacionais: (1) atribuindo a cada qual uma fonte própria de arrecadação tributária, que é usualmente conhecida como competência tributária; (2) atribuindo ainda um certo rateio do valor arrecadado, a fim de que as bases econômicas mais amplas sejam compartilhas com os entes subnacionais, tal como ocorre com o imposto sobre a renda, cuja arrecadação é cerca de 50% compartilhada, de modo redistributivo, com estados, DF e municípios, a despeito de a competência tributária ser da União. Existem ainda outros modos pelos quais esse rateio de valores ocorre, porém com impactos menores, tais como (3) na arrecadação das receitas patrimoniais, acima referidas, ou na (4) divisão da arrecadação de 25% do ICMS dos estados para com os municípios, conhecido como VAF (Valor Adicionado Fiscal), ou ainda (5) no rateio horizontal de ICMS entre os estados de origem e de destino, com a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS, e (6) no não repasse à União do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte sobre a remuneração de servidores estaduais e municipais, além de outras formas. Existe mesmo uma espécie de federalismo econômico, que não é fiscal, através do uso de Fundos de Desenvolvimento do Norte, Nordeste e Centro Oeste (artigo 159, I, “c”, CF).
Como visto, consoante as normas constitucionais hoje vigentes sobre federalismo fiscal, cada estado possui competência tributária (item 1, acima) para dispor e cobrar o ICMS, a despeito de haver uma lei complementar que estabelece as normas gerais (nacionais) acerca da matéria, que é a Lei Kandir.
E aqui se chega ao ponto central do debate: infringiria a cláusula pétrea acerca da “forma federativa de Estado” a abolição do ICMS e a criação de um tributo semelhante, sobre a circulação de bens e serviços (denominado IBS, na proposta elaborada pelo CCiF – Centro de Cidadania Fiscal), nas mãos da União, que dividiria a arrecadação com os estados? O mesmo se pode perguntar quanto aos municípios, relativamente ao ISS.
Para alguns eminentes professores de Direito Financeiro e Tributário, ouvidos informalmente, trata-se de uma aberração, pois violará centralmente o pacto federativo e diminuirá a autonomia financeira dos estados e municípios, pois sem competência tributária não haverá autonomia, e, portanto, a proposta de emenda constitucional seria inconstitucional desde sua origem, neste específico aspecto, e sequer poderia tramitar no Congresso, pois afetaria a “forma federativa de Estado” (artigo 60, parágrafo 4º, inciso I, CF).
Para outros igualmente destacados docentes de Direito Financeiro e Tributário, a situação é diversa, pois entendem que a autonomia não se cinge à competência tributária, uma vez que é composta de várias outras fontes de arrecadação, como mencionado. Também em conversas informais, comentam que uma das maiores alterações de competência tributária ocorreu quando a Lei Complementar 87/96, conhecida como Lei Kandir, impediu os estados de cobrar ICMS na exportação, o que antes era permitido, não se tendo cogitado de violação à cláusula pétrea do federalismo. O mesmo ocorreu quando a Emenda Constitucional 3/93 extinguiu o Imposto sobre Venda a Varejo de Combustíveis (IVVC), que competia aos municípios, e o Adicional de Imposto sobre a Renda, que pertencia aos estados. Dizem ainda que basta haver receita para que estados e municípios se mantenham autônomos, não sendo necessário que seja decorrente decompetência tributária. Logo, se atribuída quantidade de recursos para que estados e municípios sejam autônomos, será constitucional a proposta de emenda constitucional neste aspecto.
De minha parte, penso que é imprescindível haver recursos suficientes para que os estados e municípios sejam autônomos e que os possam receber e gerenciar sem ter que cumprir condições impostas pelo governo central, o qual também não pode ter a possibilidade de sua manipulação, o que tornaria os entes subnacionais subservientes ao poder central — existem diversas ações promovidas pelos estados contra a União acerca desse aspecto. Isso transformaria os estados e municípios em autarquias federais, o que modificaria completamente o federalismo brasileiro, tão decantado teoricamente, mas capenga na prática. Não conheço a proposta que vai ser encaminhada, logo, aguardemos o que virá e se tais requisitos estarão nela contidos. A promessa é de mais federalismo; ocorrerá?
De todo modo, como a judicialização do tema será inevitável, tendo como palco o STF, tenho uma proposta prática para encaminhar. Tão logo apresentada a PEC da Reforma Tributária, qualquer dos órgãos políticos legitimados pelo artigo 103, CF, deveria propor uma ADI para discutir este específico tema central ao texto. O STF desde logo decidiria, pois a Constituição determina que não pode sequer ser debatida a proposta de emenda constitucional tendente a abolir uma cláusula pétrea, o que torna incabível o uso da jurisprudência de que não cabe a um Poder se imiscuir nas atividades do outro. Para esse específico aspecto é plenamente possível.
O STF poderia decidir com agilidade, como já fez em outras ocasiões, a fim de previamente desbloquear a pauta do Poder Legislativo, que, assim, poderá (ou não) apreciar a matéria sob esse aspecto. E desbloquearia a pauta do Poder Executivo, uma vez que, vedada esta alternativa, outros projetos possam ser gestados e apresentados ao Legislativo, sem esse viés de infringência às cláusulas pétreas. Ou mesmo ser feita uma “reforma tributária infraconstitucional”, tema que abordei no evento Iasp/Aasp, e que tratarei em outra coluna.
A doutrina que não for adotada pelo STF deverá permanecer ativa e atenta, pois a decisão judicial não esgota o debate acadêmico, apenas decide o caso concreto. Se a doutrina efetivamente doutrinar, poderá exercer o papel de corrigir os desvios que foram adotados, o que é pertinente inclusive nesta hipótese radical. Quem pensa no imediatismo não planta árvores.
Quem sabe o Conselho Federal da OAB não propõe esta ADI específica, tão logo seja apresentada a PEC da Reforma Tributária, limpando o caminho, tal qual exposto? Penso ser esta uma trilha mais republicana do que as usuais consultas informais efetuadas a alguns ministros do STF, que muitas vezes mais complicam do que solucionam impasses.
*Fernando Facury Scaff é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Fonte: Revista Consultor Jurídico