Três observações são necessárias antes que se comece a tratar propriamente do projeto para um novo CPC1.
A primeira delas é a de que realmente este projeto, em todas as suas versões, têm inegavelmente muitas qualidades. Na minha opinião a mais relevante delas é conter dispositivos que dão relevância a jurisprudência reiterada dos Tribunais Superiores2 no mesmo sentido e outros que estimulam os ministros e os desembargadores a construir uma jurisprudência uniforme e a mantê-la estável. Trata-se de uma forma de combater um sério problema que aflige quase todas as sociedades latino americanas e mesmo países europeus, como por exemplo, a Itália: a incrível dispersão jurisprudencial. Uso de propósito a expressão dispersão em vez de divergência, porque, o que ocorre no Brasil e em tantos outros países não é haver duas teses jurídicas diferentes resolvendo o mesmo problema, mas, diversas as vezes quatro ou cinco maneiras diferentes de pôr fim a controvérsias absolutamente idênticas.
Todas as versões do projeto procuram estabelecer visível contextualização do Código num panorama mais amplo em que a CF/88 figura como lei fundamental, que deve dar o tom a todos os demais dispositivos que compõem o sistema positivo. Percebe-se, também, uma tentativa de simplificar as regras, hoje existentes, com o objetivo de que elas não se transformem em mais um problema que o juiz tem que resolver, além do mérito.
Evidentemente, todos os pontos acima mencionados podem ser considerados como qualidade do projeto.
A segunda observação consiste em que se deve ter presente que este Código não vai resolver todos os problemas da prestação jurisdicional no Brasil. Aliás, nem este e nenhum outro. A mudança da lei não tem senão um papel de coadjuvante nas mudanças sociais. Apenas numa certa medida terá um novo diploma legal o condão de produzir alterações visíveis no plano empírico. De fato, o excesso de litigiosidade, que é um problema social, é indiretamente responsável pela morosidade dos processos. Isto porque, estando muitos dos nossos tribunais abarrotados de processos e recursos para julgar, é natural que não consigam dar vazão a tudo num tempo que, socialmente, se considere razoável. Mas não se consegue, com a mudança da lei, acabar com o excesso de litigiosidade, que é um fenômeno sociológico. O máximo a que se pode chegar, com o novo CPC, é ao desestimulo ao ato de recorrer em face da jurisprudência pacificada.
O quadro melhora, mas o problema não se resolve integralmente. Portanto, é bom que não se tenha otimismo exagerado quanto à potencialidade de produção de resultados positivos como fruto da promulgação da nova lei.
Que isso não seja visto como algum tipo de desestimulo a que haja aprovação do novo CPC!
A terceira e última observação diz respeito a uma crítica que se se vinha fazendo com frequência ao Código vigente. Dizia-se, e, ainda se diz, que o CPC vigente precisava e precisa ser substituído por um Código novo porque se tinha transformado numa verdadeira “colcha de retalhos”, em virtude das várias reformas parciais que houve durante os últimos vinte anos. No entanto, o projeto já passou por várias comissões, depois da primeira, de que tive a honra de ter sido relatora.
Nos últimos tempos, mais especificamente nos últimos dois anos, o projeto foi uma esponja para acolher sugestões oriundas de todos os cantos do Brasil, dadas por um número incomensurável de processualistas. Houve momentos, em que, numa mesma semana, o projeto teve três versões diferentes. Preparar palestras ou dar entrevistas sobre o projeto passou a ser um tormento: porque se precisava (e se precisa) saber qual a versão do dia. E o pior é que essas versões não são divulgadas oficialmente: ou seja, não se sabe ao certo qual está “valendo”.
Se este fenômeno tem um lado muito positivo, porque as pessoas que contribuíram, principalmente as que ficaram à testa da seleção e inclusão das propostas enviadas, são juristas muito preparados e sobretudo bem intencionados, e por que isso é a democracia, por outro lado, evidentemente, o que se tem hoje é a mesma “colcha de retalhos” que tanto se criticava e ainda se critica. Perdeu-se a oportunidade de se construir um projeto coeso, harmônico e simples.
O objetivo de se ter um projeto coeso, harmônico e simples só poderia ter sido alcançado se houvesse humildade da comunidade, e se cada um dos processualistas brasileiros abrisse mão de considerar a sua opinião como sendo, sempre, a que devesse prevalecer.
Apesar destes “pesares”, há lugar para certo otimismo em relação à atual (?) versão do projeto.
Nenhuma das comissões oficialmente nomeadas ou grupos de trabalho que informalmente trabalharam no texto, felizmente, cedeu à tentação de reduzir o número de recursos como meio de tornar o processo mais célere3.
A meu ver, é solarmente claro que esta não é a solução. Vivemos num país sem maturidade ética, característica esta que macula todos os grupos sociais em maior ou menor grau, infelizmente. Como subtrair à parte o direito de recorrer? O que se pode fazer é adiar o momento de exercício deste direito, como se fez no projeto, alterando-se o sistema da preclusão e deixando as questões decididas pelo juiz, que hoje são objeto de agravo, para serem impugnadas no recurso de apelação4. Assim, nesse caso, só aparentemente se teria suprimido um recurso. A situação ficou quase inalterada, pois a questão é e continuará sendo decidida no mesmo momento, ou seja, quando for decidida a apelação. Daí se vê por que não procedem muitas das críticas que neste ponto muito injustamente têm sido feitas ao projeto.
Alterações extremamente positivas foram feitas no plano dos REsps e RExts, tornando estes recursos mais eficientes para resolver a controvérsia subjacente, desestimulando a lastimável jurisprudência dita “defensiva” dos Tribunais Superiores5.
A mesma atitude deve haver no 1º e no 2º grau: havendo possibilidade de se julgar o mérito, de recursos e de ações, deve o tribunal, ou o juízo de 1º grau, sempre que possível, relevar ou mandar sanar falhas que, em tese, impediriam o julgamento da controvérsia6.
As cautelares tipificadas despareceram, tendo dado lugar a um tratamento conjunto das tutelas “antecipadas”, que podem ser cautelares ou satisfativas7.
Muda-se a terminologia habitualmente empregada, mas a nova é racional e cabe à doutrina explicá-la.
O projeto aceita o fato consumado que consiste em que o juiz, nos dias atuais, não decide com base na lei que, se percebe à luz da mera leitura de seu enunciado, se aplica claramente ao caso concreto. Estando o sistema repleto de conceitos vagos e cláusulas gerais, a nova lei exige do magistrado fundamentação analítica sempre que a lei a aplicação da lei ao caso concreto não seja evidente8.
Isto não significa em absoluto que o Código novo dê mais poderes ao juiz. Significa que a nova lei reconhece que decretar um despejo por falta de pagamento envolve um processo decisório muito mais simples do que se dizer, por exemplo, que não cumpre a função social a propriedade em que se plantam psicotrópicos, e, portanto, se desapropriada, indenização quanto a esta parte da gleba desaproprianda não deve ser paga ao proprietário. Neste último caso, a juiz aplica a cláusula geral da função social da propriedade, e, por isso, a fundamentação de sua decisão deve corresponder à complexidade do processo decisório, não podendo ser frágil e superficial, resumindo-se a frases feias e a algumas citações em latim.
Estas são, a meu ver, alterações relevantes que seriam trazidas pelo novo CPC, na versão atual do projeto, e que constam desde o início. Prova de que, em meio a estes desencontros gerados pela democracia, são fruto de unanimidade.
Para concluir, deve-se lembrar que novas lei não mudam “cultura”: a atitude psicológica dos operadores do Direito e do processo. Devem, para que se operem efetivamente as mudanças esperadas, ser acompanhadas de bons cursos de Direito, de obras didáticas de qualidade e, sobretudo, de bons exemplos.
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1 Todos os artigos mencionados neste ensaio estão de acordo com a Emenda Aglutinativa Substitutiva Global, que tramita na Câmara dos Deputados, de 09 de outubro de 2013.
2 Art. 520 e ss.
3 Art. 1.007.
4 Art. 1.022 e §§s.
5 Cf. arts. 1.042, §§ 2.º, 3.º, 4.º e 5.º; art. 1.043, § único; art. 1.045, art. 1.046, art. 1.047 e art. 1.048, §§ 3.º, 9.º, 10.º e 11.º
6 Art. 282, §2.º.
7 Livro V, arts. 295 e ss.
8 Art. 521, §6.º.
Fonte: Migalhas